segunda-feira, 29 de março de 2010

Aproximações da Subjectividade nos filmes etnográficos

Dentro do filme etnográfico existem alguns factores que permitem uma maior subjectividade e que estão directamente relacionados com a forma do filme, isto é, com os elementos que o compõem. É o caso da voz, das sequências, dos planos, dos takes, do som (música), da cor, dos efeitos especiais e essencialmente do processo de montagem. Os conteúdos, a “mise en scéne” dos personagens, são outros aspectos que podem influenciar o espectador na compreensão do filme. Cabe ao realizador “dosear” essa mesma subjectividade.

Através da voz narrativa, conduz-se o espectador a um sentido preciso, através da forma como fala e como estão organizados os materiais que são apresentados.A voz off, muito utilizada nos filmes etnográficos até à época de 50/60, antes do surgimento do som síncrono, leva-nos constantemente a seguir as direcções que o filme pretende dar, podendo tornar-se, tal como Bill Nichols o afirma, omnisciente e autoritária, encaminhando-se para um reducionismo didáctico. Não podemos esquecer que muitos dos filmes etnográficos realizados nesta época tinham um conteúdo ideológico muito forte, pelo que a voz off, geralmente, reforçava o autoritarismo que o próprio período colonial exigia.

Nesta perspectiva, pode pensar-se que, através da voz que se ouve, é a própria história que nos fala ou a própria realidade que está em causa, embora o que se oiça seja a voz do texto, por vezes tendenciosa, dirigida pelo realizador. Através dela seguimos a descrição exaustiva das acções visualizadas no filme, ou a sua contextualização, mas quase sempre com uma grande rigidez.

Antes do cinema sonoro e da importância da palavra verbalizada, era, sobretudo, a montagem que tinha esse papel manipulativo e permitia abordar a realidade subjectivamente. Apesar de ainda hoje desempenhar um papel importante, a verdade é que este elemento foi essencial na época do mudo. A montagem era “soberana” e a ela cabia sempre a última palavra no que diz respeito à sua significação. Com o cinema sonoro, a montagem tornou-se democrática, actuando em conjunto com a palavra.
A descoberta das inúmeras potencialidades narrativas da montagem, antes mesmo da escola russa, na década de 20, foi feita por David Griffith, que descobriu uma linguagem própria para descrever, contar e dramatizar o mundo. Através da montagem paralela, da montagem “encaixada”, montagem contrastante, montagem rápida e montagem curta, a narrativa nascia no cinema.
Eisenstein, grande cineasta russo, foi dos primeiros a perceber a importância da montagem e a preocupar-se com os efeitos que esta produzia no espectador, no sentido de o transformar, pois o que está em causa não é tanto a captação da realidade por parte da câmara, mas a produção de estímulos nos espectadores. Esses estímulos podem ser subjectivo e por vezes aproveitados no filme etnográfico. O problema do realizador não reside em encontrar o estímulo para evocar uma dada realidade, mas em escolher de uma profusão de estímulos, aqueles que melhor representam a totalidade de uma experiência.

A este propósito gostaria de vos falar de dois exemplos de filmes etnográficos de grande valor, embora não deixem de ser subjectivos: Nannok of the North , de Robert Flaherty e Dead Birds de Robert Gardner.


Nannok of the North, tem sido muito discutido pela sua autenticidade, falsidade, romantismo e qualidades formais. Seguindo os conselhos de David Griffith, no que diz respeito à montagem, Flaherty consegue um considerável efeito subjectivo na estrutura do filme e na forma como aborda a vida de uma família que luta contra a adversidade de um meio físico tão agreste. O próprio tratamento dos detalhes íntimos da vida Inuit não foi esquecido.
Jogando sempre com a tensão dramática e a curiosidade, o realizador absorve a atenção do espectador e envolve-o na trama, colocando-o na expectativa do que vai acontecer na cena seguinte. Num outro trabalho de Flaherty, “ Man of Aran”, rodado na costa da Escócia, o realizador torna a utilizar a dramatização, com o intuito de aprofundar, mais uma vez, o tema da sobrevivência no seu ambiente natural. Utiliza para isso habitantes locais e preocupa-se com todos os pequenos pormenores, incluindo o vestuário, adaptando-o de modo a dramatizar mais a experiência daquelas gentes.

Dead Birds, é um filme de Robert Gardner, realizado em 1961, sobre um ritual guerreiro, entre os Dani da Nova Guiné. Neste filme podemos encontrar uma narração dramatizada, tal como a utilizada por Flaherty. É considerável a montagem paralela, intercalando diferentes acções que parecem acontecer simultaneamente.


Outro dos motivos que podem levar à subjectividade deste filme deve-se ao facto do realizador ter criado personagens, necessidades e problemas que são narradas com muita ficção ocidental. Exemplo disso é a criação de uma relação pai/filho ideal que entrasse em sintonia com os espectadores ocidentais, o que não tem o mesmo significado para os Dani.
A principal subjectividade do filme reside na possibilidade do filme produzir reacções e sentimentos no espectador em relação aos sujeitos retratados, através da encenação que o próprio realizador criou.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Diferentes modos de ver a realidade: O FILME ETNOGRÀFICO


Ao filmar uma outra cultura, uma outra sociedade, o realizador do filme etnográfico, tal como o antropólogo, invade um espaço que não é o seu. Essa situação coloca-lhe riscos, na medida, em que é através do seu “olhar” que a audiência vai compreender essa mesma cultura. A objectividade científica em Antropologia, tem sido de certa forma, contestada exactamente por essas questões inerentes à alteridade. Em primeiro lugar, o antropólogo/realizador é sempre um estranho, que traz consigo padrões culturais bem definidos, por outro lado, destabiliza e cria reacções novas, a partir do momento em que faz impor a sua presença.
Os problemas do etnocentrismo são outro aspecto a analisar, isto porque é difícil analisar o “outro” que é diferente de mim, das minhas maneiras de ser e crer e construir um modelo representativo daquele contexto cultural e transmiti-lo como único e verdadeiro, quando essa verdade depende da minha forma de “olhar”.
Se esta tem sido uma dificuldade sentida pelos Antropólogos em geral, que passam longas estadias entre povos que desconhecem, com o intuito de elaborar monografias escritas, mais sério se torna a nível da Antropologia Visual ao contrário do que se possa pensar.

Ao documentar uma cena em profundidade, o realizador tem a responsabilidade de seleccionar as imagens que lhe parecem mais significativas e que revelam melhor o sentido da cultura abordada.
Assim, ainda que o cineasta do filme etnográfico tenha de escolher as suas imagens, com o mesmo cuidado com que um etnógrafo escolhe as suas palavras num livro de notas, a forma como as imagens são montadas podem produzir resultados mais ambíguos.
Como o defende David MacDougal, a nossa relação como espectadores à narrativa do documentário é mais complexa do que em ficção, já que não lidamos com produtos da imaginação, mas com seres humanos encontrados por um realizador que coexiste com eles historicamente e que nos descreve com base na sua experiência. Por outro lado, o simples facto do filme etnográfico ser dirigido a uma audiência pública mais vasta do que a da literatura antropológica, podendo ser visionado na televisão, em vídeo e noutros meios de circulação, aumenta os riscos da subjectividade.

A partir do momento em que o realizador está entre a sua própria cultura e outra, assumindo o papel de mediador, a função deste é elaborar uma sequencialidade de imagens que estendam a sua compreensão para uma audiência que tem apenas o filme como fonte. É a partir do seu entendimento que influenciará também o nosso “modo de ver”.

Esta tem sido uma questão sempre actual ao longo dos anos, polémica e controversa, que tem fascinado vários cineastas e suscitado várias perspectivas de entendimento: deve ou não o realizador ter um papel activo na construção do seu próprio filme, ou deve apenas registar o que se passa diante da câmara com a máxima objectividade?
Na minha perspectiva, esta é uma questão que, apesar de pertinente acaba por não ter uma resposta definida, porque como tinha referido, a objectividade pura em Antropologia, ou no modo como vemos os outros, é sempre algo questionável. Depende sempre do modo como cada um de nós visualiza os “outros” e o seu mundo.
O modo como eu analiso uma sociedade, enquanto antropóloga não será de certo o mesmo que outro colega de profissão, porque não existem fórmulas certas.

sexta-feira, 19 de março de 2010

A Primavera chega este fim de semana

Apesar do tempo ainda não estar perfeito, a Primavera chega este fim-de- semana, com ela esperemos que chegue também o desejo de renovação, de libertação, e aquele cheirinho a felicidade que tanto precisamos. Deixo-vos com as palavras do Torga carregadas de pureza e de campo...aromatizadas com esse doce aroma da Primavera.
Anunciação
Surdo murmúrio do rio,
a deslizar, pausado, na planura.
Mensageiro moroso
dum recado comprido,
di-lo sem pressa ao alarmado
ouvido dos salgueirais:
a neve derreteu nos píncaros da serra;
o gado berra dentro dos currais,
a lembrar aos zagaiso fim do cativeiro;
anda no ar um perfumado cheiro
a terra revolvida;
o vento emudeceu;
o sol desceu;
a primavera vai chegar, florida.

Miguel Torga

quarta-feira, 10 de março de 2010

O Filme Etnográfico e a Antropologia

Os próximos posts deste blog serão dedicados à Antropologia Visual. Para tal, irei basear-me num trabalho efectuado em 1998 para a cadeira com o mesmo nome, leccionada por Catarina Alves Costa, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, em Lisboa. Espero que possa suscitar algum debate antropológico e algum interesse sobretudo para os estudantes de antropologia que são seguidores deste blogue.

O filme etnográfico é uma das vertentes do documentarismo e está directamente relacionado com a exploração de temas sociais e culturais.
O seu percurso está ligado e determinado, por um lado, à própria evolução do documentarismo, no que diz respeito aos métodos e técnicas nele empregues e, por outro lado, à tradição antropológica que vai influenciando os seus conteúdos e modos de abordagem.
Pode ser entendido como um filme que procura revelar uma sociedade a outra, preocupando-se com a vida física de um povo ou com a sua experiência social. Daí que a maior parte dos filmes etnográficos realizados se interessem muito pelo mundo em “extinção”, pela valorização e preservação do exótico, “viajando” até aos paraísos perdidos das “sociedades primitivas”.

Nesta perspectiva, o filme etnográfico partilha com a Antropologia um interesse comum: o conhecimento de outras culturas e civilizações, de certos aspectos característicos das mesmas (cerimónias, rituais, identidades colectivas), sua compreensão e divulgação.

Desde os primórdios do filme etnográfico que esta ambição de dar a conhecer o desconhecido e desvendar outras realidades foi um imperativo.
Nannok of the North, de Robert Flaherty, realizado em 1922, foi provavelmente o primeiro filme etnográfico a abordar contextos primitivos, nomeadamente a vida tradicional esquimó. Neste filme podemos verificar uma tentativa de observar as atitudes e comportamentos que na figura de Nannok, personagem indígena escolhida, representaria este grupo étnico.

Outra das possibilidades do filme etnográfico, e muito considerada pelos antropólogos, é a utilização da imagem enquanto complemento da teoria.
Foi neste sentido, que a Antropologia Visual, enquanto disciplina académica se desenvolveu (principalmente na América, na Universidade da Califórnia), na medida em que as imagens colhidas no campo ilustravam a realidade que as monografias escritas retratavam.
Todavia, só se pode falar de filme etnográfico quando essas imagens são elaboradas, montadas, de forma a constituírem um todo, deixando de ser um mero material “bruto” que em si corresponderia ao equivalente das notas do diário de campo.
Na escrita, como na imagem, pretende-se a concepção de um “mundo de representações”, uma elaboração de um modelo cultural, embora com leituras diferentes.

O valor do filme reside assim, no facto de poder explorar os vários níveis da experiência humana, com uma simultaneidade que é impossível nos estudos escritos. Numa simples cena, por exemplo é possível observar não só os detalhes físicos de um ritual, mas também o seu sentido psicológico e o seu significado simbólico.
Por outro lado, o filme proporciona o desenvolvimento da Socio-Línguistica e da Cinestesia, abordando aspectos da linguagem não verbal, como os gestos, as atitudes corporais, as posturas, as emoções e permite desvendar aspectos não visuais da cultura, como é o caso dos valores, das crenças e das representações.
Apesar da importância da imagem, o filme não exclui o documento escrito , nem vice-versa, pois, para se compreender o que se observa é necessário que haja um conhecimento prévio, sistematizado, de forma a dar sentido ao que se vê.
No entanto, para muitos autores, entre eles David MacDougall, o filme etnográfico não tem de ser forçosamente antropológico ou realizado em contextos “longínquos”, já que o aspecto intercultural do filme etnográfico não é sempre essencial. Muitos filmes etnográficos podem mesmo abordar as sociedades modernas e industrializadas, reflectindo sobre as nossas próprias “vivências”. O que se torna importante é , essencialmente, o sentido com que os realizadores examinam e retratam aspectos das suas próprias sociedades , de acordo com a forma e contéudo, e que têm paralelo com os utilizados no filme etnográfico. É o caso, por exemplo, de Wieseman ou Rouch, entre muitos outros realizadores, que tentam filmar a sua própria realidade, através de gestos quotidianos dos actores sociais.
Por outro lado, o filme etnográfico pode dividir-se em algumas categorias: imagens em bruto de material etnográfico para investigação; filmes destinados a audiências especializadas e académicas; filmes que destinando-se a uma audiência generalizada, podem englobar-se numa categoria mais geral do documentário; filmes etnográficos para a televisão; filmes educativos, reportagens com interesse antropológico, entre outros.

A definição de filme etnográfico é assim complexa porque permite a criação de fronteiras que, afinal, são arbitrárias. Seja como for, a excessiva generalização da mesma pode ser perigosa, na medida, em que pode confundir o filme que dá conta de padrões culturais com os filmes que se fazem, por exemplo em Hollywood.

Alpha: a história de uma amizade que sobrevive há milénios

Alpha é um filme que conta uma história que se terá passado na Europa, há cerca de 20.000 anos, no Paleolítico Superior, durante a Era do...