Devo confessar que a exposição que vi sobre a vida deste homem, em Julho, no Palácio da Ajuda, me fez desbloquear o trauma, o medo, o mito, eu sei lá, que tinha em relação à escrita deste homem.
Desde Julho, já li três livros seguidos dele, dois volumes dos Cadernos de Lanzarote, onde o escritor narra em forma de diário, o seu quotidiano e a sua vida atarefada, as suas deslocações constantes em diversas partes do globo, quer seja promovendo os seus livros ou fazendo conferências. No período que abrange estes primeiros dois volumes dos Cadernos, dá para perceber, que a sua actividade literária tem de se conciliar muito bem com a sua agenda de entrevistas, depoimentos, artigos de opinião que faz, entre outros vários aspectos. Estes cadernos são óptimas leituras para quem se interesse em conhecer melhor como é o homem por trás do escritor, embora não seja intenção de José Saramago que estes livros o revelem ou exponham a sua vida privada com Pilar. São antes importantes testemunhos sobre a sua forma de pensar e a sua posição sobre o mundo.
Mas destes três livros, foi o Ensaio da Cegueira que me surpreendeu verdadeiramente. Já conhecia a história desde há alguns anos, pois já tinha visto a peça de teatro inspirada na obra, pelo grupo «O Bando», na Trindade. No entanto, ou foi a memória que me traiu e não me recordou de toda a trama, ou alguns aspectos na peça não foram tão perturbadores como este livro.
Confesso que várias vezes estive para desistir de o ler, não pela dificuldade da linguagem ou pela forma como o autor escreve os diálogos, sem pontuação, mas pela força do texto, pela experiência tão real que me fez sentir, um verdadeira viagem ao mundo das trevas, que me acompanhou no último mês. Não há dúvida que Saramago toca na ferida, naquele ponto fraco que a nossa civilização tem: a tecnologia e o bem-estar que a maioria de nós possui nas suas vidas. Não pensamos no que nos faz falta, senão quando o perdemos, e é bem verdade… Se um dia destes, tal como as personagens do livro, (com excepção da mulher do médico) todos nós começássemos a sofrer de uma cegueira colectiva, e deixássemos de poder viver como vivemos, o que aconteceria à ordem das coisas? Na verdade, sempre existiram cegos, mas sempre auxiliados por toda uma estrutura de bens e serviços desenvolvidos por gente que vê.
No livro do Saramago, a cegueira torna inalcançável todos os bens essenciais à sobrevivência da humanidade, é-se privado de água potável, electricidade, alimentos, meios de comunicação, tudo porque toda a gente cegou e não há quem possa trabalhar. Por ser “o salve-se quem puder”, o mais importante é mesmo a lei da sobrevivência, e com essa luta, vêm à superfície também a falta de escrúpulos, a imoralidade e a indignidade humana. Joga-se com qualquer moeda de troca para arranjar comida, a qual passa pela chantagem, pelo roubo, pela violação, pelo engano, pelo consentimento da desonra.
As cenas do livro sucedem-se, cada vez mais fortes e mais difíceis de digerir, mas trata-se sem dúvida de um olhar bastante realista sobre a nossa desorientação perante uma tragédia, uma calamidade como esta, que afinal, tirando o facto de ficarmos todos cegos (atendendo aqui que a cegueira é uma metáfora), pode bem um dia acontecer. Lido numa altura, em que tanto se fala da crise financeira a nível mundial, este livro que fala de cegueira, fez-me reflectir várias vezes, sobre a linha vermelha que andamos quase todos em risco de pisar. E se passarmos essa barreira, o que estará para além dela? Num mundo em que nos habituamos ao conforto e à opulência, como viveremos se tudo ruir?
Penso que o livro do Saramago é nesta perspectiva, e no meu entender, um grito de alerta para a cegueira com que vivemos, com olhos de ver, mas não de observar, sem dar verdadeira atenção às coisas verdadeiramente importantes, a empenharmos-nos até à medula, a ter tudo quanto é novo modelo e de primeira qualidade, e para quê? Tudo futilidades que alimentam o ego, mas tão pouco o ser…
Enfim, estas são apenas algumas linhas de reflexão que queria partilhar convosco, assim como dizer-vos, que ainda bem que tive coragem de ir com o livro até ao fim. Não tenho dúvidas que o Saramago fez um excelente trabalho nesta obra. Aos poucos irei lendo as outras…. Muitos mundos tenho ainda por descobrir!
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