terça-feira, 19 de janeiro de 2010

A FEIRA DA LADRA: UM LUGAR ANTROPOLÓGICO


Dando seguimento aos posts anteriores retomo a temática da Feira da Ladra e da sua importância enquanto lugar antropológico. O texto que passo a transcrever já tem alguns anos, é datado de 1996, mas considero que ainda tem bastante pertinência e não se encontra ainda muito desactualizado, é inspirado sobretudo no autor Marc Augé.

1. A Definição de um lugar antropológico

Os lugares são elementos fundamentais do espaço que nos rodeia. São superfícies transformadas pelo homem, adquirindo um sentido e um significado, na medida que os indivíduos que os habitam lhes imprimem algo de si e os tornam “palco” de relações colectivas e de sentimentos partilhados. Só assim, os lugares deixam de ser um espaço abstracto e adquirem uma linguagem e um meio de expressão entre os indivíduos.
Falamos, pois, da construção do lugar antropológico. Segundo Marc Augé (1), autor que aprofundou o estudo sobre esta temática, estes lugares são tradicionais, produzindo nos seus habitantes um efeito de identificação de si próprios, onde existe uma memória colectiva que se (re)actualiza constantemente.
Neste sentido, como o próprio Marc Augé o definiu, os lugares antropológicos são:

«…[uma] construção simbólica do espaço que, por si só, não poderia dar conta das vicissitudes e das contradições da vida social, mas à qual se referem todos aqueles a quem ela atribui um lugar, por mais humilde e modesto que seja.» (2)

Por outro lado, são lugares que se pretendem identitários, relacionais e históricos.

«O lugar é (…) histórico, na medida em que conjugando identidade e relação, se define por uma estabilidade mínima, e desde que os que nele vivem possam reconhecer pontos de referência que não têm de ser obrigatoriamente objectos de conhecimento.” (3)

Ao não negar a presença do “outro”e ao rever nele, muitos dos padrões e moldes culturais em que foi criado, o indivíduo que “habita” o lugar antropológico autoprotege-se da perda da identidade e da solidão dos não-lugares, isto é, lugares desprovidos de investimento humano.
Vejamos agora , em breves linhas, o modo como as feiras têm actuado como lugares de convívio e de reunião, ao longo dos tempos, sendo um dos lugares antropológicos mais antigos da nossa história.

O contexto relacional das feiras

Não se sabe ao certo a época em que surgiram as primeiras feiras e mercados, embora se pense que fossem fenómenos económicos-sociais conhecidos pelos Gregos e Romanos. Aparecendo na história das mais remotas civilizações, estas derivariam, seguramente, da necessidade de troca dos artigos essenciais à vida.
Em Portugal, as primeiras referências às feiras encontram-se em documentos legislativos, datados dos primeiros anos da nacionalidade.

«Nascidas da necessidade de promover a troca de produtos entre o homem do campo e o da cidade, elas representam o ponto onde se concentrou a vida mercantil duma época em que a circulação das pessoas e das mercadorias era dificultada pela falta de comunicações, pela pouca segurança das jornadas e pelo excesso de portagens e peagens. » (4)

Desde aí, as feiras serviam não só um fim económico, mas representavam também um papel importante do ponto de vista social e cultural, permitindo a partir da reunião, a oportunidade da população se expandir.

«Era nas feiras que se obtinham notícias do que se passava pelo “mundo”, do resultado das colheitas das regiões circunvizinhas e de tantos outros assuntos que (…) são a base do cavaquear do Povo.» (5)

Afastados fisicamente, os indivíduos viam nesses momentos ocasião para se reunirem e trocarem notícias e boatos quer do exterior, quer da própria comunidade a que pertenciam.
As feiras e os mercados da Idade Média representavam, nesta perspectiva, o papel que hoje é desempenhado pelos mass media, ligando e aproximando os indivíduos do mundo exterior e dos acontecimentos mundanos mais marcantes.
Contudo, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, o mundo ele próprio evoluiu e muitas das características essenciais das feiras foram-se subvertendo, pela revolução urbana que transformou todos os conceitos de vizinhança e de mercado. Os conceitos de feira/mercado que na Idade Média eram indissociáveis distinguem-se, evoluindo os mercados no sentido de se tornarem quase só centros de abastecimento de produtos alimentares e de primeira necessidade, perdendo estes os aspectos lúdicos e sociais a eles associados, que pelo contrário, continuam a caracterizar as feiras. Estas, apesar de “decaídas do seu antigo esplendor em consequência da maior facilidade de comunicações” (6), são ainda uma “curiosa e útil instituição.” (7) Prova disso será a Feira da Ladra, que mesmo situada em tecido urbano, continua a marcar uma forma de convivencialidade muito própria.


Notas
(1) Augé, Marc – Não Lugares: Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade, Venda Nova: Bertrand, 1994
(2) Op. Cit. p. 58
(3) Op. Cit. p.61
(4) Rau, Virginia – Subsídios para o estudo das Feiras Medievais Portuguesas, Lisboa: Bertrand, 1945, p.9
(5) Op cit. p.29
(6) Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira – Lisboa/Rio de Janeiro: Editorial Limitada, 1945, p.38
(7) Ibid. p. 38

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