O período revolucionário que se seguiu foi uma contra imagem do Estado Novo. Há um mergulho redentor no povo e assiste-se a uma atitude política da cultura popular orientada para o futuro, para a transformação profunda do regime.
Dois dos nomes mais importantes, nesta viragem política no estudo da Cultura Popular, nomeadamente na música tradicional, foram os de Fernando Lopes Graça, e Michel Giacometti.
Michel Giacometti é um intelectual de esquerda, corso, que veio para Portugal, em 1959,captar os sons e as melodias do nosso povo rural, tendo percorrido o país inteiro de microfones na mão.[1] A pesquisa da música tradicional em Portugal durante a ditadura pouco se fez e a existente serviu sobretudo fins políticos, daí que os poucos investigadores nesta área defendessem a existência de uma cultura tradicional decadente.
“ (...) Os estudos da nossa música tradicional não poderiam escapar à situação em que se encontram os estudos da totalidade gnoseológica de que fazem parte. Assim, também aqui o que até agora foi realizado entre nós não ultrapassou a fase da etnografia musical (...)” [2]
Giacometti, veio revolucionar tudo o que neste âmbito se tinha feito anteriormente, e ainda no regime de Salazar, desafiou a ideologia reinante, utilizando tecnologias pouco habituais e procurando um povo, que poucos conheciam existir.
Em 1959, mostrou as primeiras gravações que efectuou em Trás -os Montes, a Fernando Lopes Graça, e decidiu permanecer em Portugal a investigar, pois encontrara uma realidade etnográfica completamente desconhecida.
Esse trabalho viria a mostrar como a política folclorizante tinha idealizado um povo, tendo descoberto lógicas diferentes das preconizadas pelo regime. Segundo este etnomusicólogo, a política cultural oficial que promovia os ranchos folclóricos “era uma maneira de ter na mão organizações populares que podiam ter outro sentido e que assim estavam limitadas a cantar e a dançar um “folclore” que já à partida era deturpado. É por isso que se recolhermos as letras cantadas pelos ranchos folclóricos, vemos que são letras castradas, porque não há dúvidas que o povo a exprimir-se à vontade teria cantado à vontade. Mas o cacique, o chefe do grupo dizia “vocês não podem aparecer assim no festival...”, não só no aspecto social e político eram cortadas, mas também aquelas que eram um bocadinho “apimentadas”.[3]
Do árduo trabalho de Giacometti surgiu o “Cancioneiro Popular Português”, o qual contou com a colaboração de Fernando Lopes Graça, tendo sido concluído em 1981.Para a realização deste cancioneiro Michel Giacometti analisou cerca de 7000 espécimes musicais, sendo cerca de 3000 resultado da sua recolha directa.
Com esta obra Giacometti pretendeu “restituir ao povo português o que lhe pertence de uma herança legítima, nem sempre avaliada justamente como um dos mais preciosos bens do património comum”.[4]
Esta colecção de cantares portugueses revela assim um povo que se assume, que vai abandonando aos poucos os fantasmas do passado, e que se torna mais espontâneo e liberto.
Estão presentes no Cancioneiro canções de todo o país, mesmo das localidades mais remotas, incluindo canções de berço, de morte, de noivado, de festas e de arraiais, de amor e mal dizer, religiosas e de trabalho. Eram, sobretudo os cantos de trabalho, que fascinavam Giacometti, dando a conhecer uma cultura popular assente nas tarefas rurais (sementeira, ceifa, varejo da azeitona, espadelada do linho, etc) , e um canto polifónico que testemunha a solidariedade colectiva.
Nesta perspectiva, a Esquerda põe em causa a geografia simbólica do Estado Novo, descobrindo-se regiões musicais que não se coadunam com as habituais divisões da geografia humana. Diferentes regiões, como o Alentejo ou o Minho, podem estar bem mais próximas em termos musicais do que se pensava, quer pelos ritmos como pelas temáticas expressas nos seus cantos. Esse canto descoberto por Giacometti reforça a ligação do homem rural à terra,aos seus ritos e rituais, ao mundo profano e religioso.
[1] Michel Giacometti, nasceu em Ajaccio (Córsega)em 1929, foi poeta, crítico de arte, actor e director de uma companhia teatral. Fez o curso de Letras e Etnografia e organiza uma missão internacional de estudos do folclore das ilhas do Mediterrâneo em 1956.Morre em Portugal em 1990, deixando na Etnografia Portuguesa, um valioso espólio.
[2] João Ranita Nazaré, Música Tradicional Portuguesa – Cantares do Baixo Alentejo, Lisboa, Instituto de Cultura Portuguesa, 1979, p.15
[3] Michel Giacometti, in Voz do Povo, de 25/ 04/ 77
[4] Michel Giacometti, Fernando Lopes Graça (colaborador) – Cancioneiro Popular Português , Círculo de Leitores, 1981, p. 5
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