terça-feira, 23 de novembro de 2010

O discurso “Folclorizante” do Estado Novo


Os próximos posts deste blog irão dedicar-se ao estudo da música enquanto expressão da cultura popular, dando a conhecer quais os discursos existentes no antes e depois de Abril de 1974 em relação à música popular portuguesa e quais os nomes que se destacaram dentro dessa pesquisa musical.


Durante o Estado Novo, existe um discurso que implementa ao País uma construção da “portugalidade” tradicional e conservadora, assente nas características genuínas de cada região, o que confere a Portugal uma espécie de “manta de retalhos”, onde cada região teria uma cultura muito própria, com tradições e costumes peculiares. Jorge Dias é quem afirma “ A cultura nacional é um curioso fenómeno do espírito colectivo e resulta da combinação de muitos elementos.”[1]
Essa diversidade regional, geográfica, social e cultural assenta, no entanto, em características comuns, definindo no seu todo o povo português, que é visto, essencialmente, como sendo rural, caracterizado pela brandura de costumes, um misto de sonhador e homem de acção ,imaginativo, bondoso, alegre, trabalhador.

A cultura nacional é reforçada com este discurso, justificando o nascimento de grupos folclóricos, e a reinvenção de elementos que conferem uma memória nacional mais forte. A política oficial do folclorismo procurava assim, uma projecção do povo estilizado, rudimentar e tradicional, como uma visão estagnada no tempo, em que prevalecia um olhar metafórico sobre uma realidade que não existia e que se procurava perpetuar. Esta folclorização permitia reforçar o aparelho de propaganda do regime, que difundia a ideologia do povo rural e dos brandos costumes.
É dentro deste contexto que surge a FNAT (Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho) precursora da actual INATEL- com um gabinete de folclore, cujas atribuições era conceder subsídios, visitar os grupos já formados, dar-lhes apoio na sua divulgação e produzir relatórios sobre os ranchos folclóricos. A FNAT foi copiada do “Oppera doppo Lavoro” do fascismo italiano, que tinha no seu 1º artigo dos estatutos “fazer esquecer aos trabalhadores a obsessão da diferença entre ricos e pobres.”



Face a esta política, existem vozes que assumem uma posição contrária, apesar da opressão do regime, insurgindo-se contra o folclore tal como ele é organizado. Falo, sobretudo, do compositor Fernando Lopes Graça, conotado com o Partido Comunista Português, que sempre teve uma visão muito crítica sobre o folclore no Estado Novo. Para ele, a música folclórica definia-se como “ a música que está sujeita ao processo de transmissão oral. É produto de evolução e acha-se dependente de circunstâncias de continuidade, variação e selecção”. Nesta definição expressa no V Congresso Internacional do International Folk Council, nos primeiros anos da década de 50, foram excluídas as ideias de imitação, influência, dando um corpo próprio à música folclórica. Para Fernando Lopes Graça as espontâneas e autênticas manifestações do povo, não se coadunavam com o folclore oficial, na medida, em que se tratavam de “criações artificiosas, produtos daquela já anunciada folclorite aguda(...) Os ranchos folclóricos são folclore organizado, e já se deixa ver que folclore organizado é folclore deturpado – deturpação em que há um misto de ingenuidade, de cálculo, de parvoinha competição regionalista ou bairrista”. [2]
O verdadeiro sentido do Folclore consiste no que ele tem de verdadeiro e no que pode contribuir para o conhecimento etnográfico de um povo e não no que ele tem de adulterado, servindo funções propagandísticas O folclore é, no fundo, um capítulo de etnografia e, implicitamente da antropologia – portanto um modo de conhecimento do homem nas suas manifestações artísticas, literárias e culturais tradicionais”.[3]


Para Lopes Graça o folclore do regime tinha uma função, a de fachada política, de cartaz turístico, inundando a rádio, os restaurantes. O folclore ao sair do seu contexto cultural e ser exorbitado de uma forma contínua e constante altera o seu sentido, tornando-se “um puro negócio, pura especulação comercial.”
Lopes Graça idealiza um folclore espontâneo, de formação natural e livre. Para ele só esse é verdadeiro, porque é um testemunho real de uma sociedade que existe, reflectindo os factores económicos, sociológicos, políticos, éticos, etc. Este é um folclore que só se encontra junto das populações rurais, onde ainda não chegaram influências exteriores capazes de deteriorar a força da música popular.
“ (...) há que ir aí para ter a surpresa e a aventura de encontrar uma música popular forte e sadia, agreste por vezes, outras vezes tosca (...) frequentemente de uma simples mas penetrante poesia, rica de aspectos, variada de formas e sempre profundamente enraizada no solo.”[4]

O Nacionalismo defendido pelo Estado Novo estendia-se, deste modo, também à música. Segundo o compositor Lopes Graça, isso constituía um grande obstáculo para a evolução musical portuguesa, servindo apenas para reforçar a ilusão da “felicidade nacional”, sendo vazia em conteúdo e nula como forma superior de arte. A canção popular portuguesa reflectia assim a vida no campo, as tradições, os costumes, a vida quotidiana, os sentimentos (o amor e a saudade), apresentando uma linguagem acessível, com melodias suaves que entravam no ouvido com facilidade. O fado, canção nacional do regime reforçou esta ideologia, do que é ser português.


[1] Jorge Dias, O essencial sobre os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa , Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1995
[2] Fernando Lopes Graça – Obras Literárias- A música Portuguesa e os seus problemas – Edições Cosmo, Lisboa, 1973, p.256
[3] Fernando Lopes Graça- A Canção Popular Portuguesa – Publicações Europa América – 1974, p.14
[4] Ibidem. p. 41

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