Naquele dia levantara-me mais cedo. Sentia-me ansiosa e inquieta, pois era o meu primeiro dia de escola. O acontecimento fazia-me sentir importante, como se de repente ascendesse ao mundo dos adultos, ganhando novas responsabilidades, novos ritmos e horários. Era a primeira vez que saía das saias da mãe, a primeira vez que teria de enfrentar o mundo por mim mesma, de aceitar desafios e acatar ordens de outra pessoa, que não os meus pais. Porque o dia pedia solenidade, a minha mãe costurou-me de propósito uma bata, de uma brancura imaculada e comprou-me uma sacola nos Armazéns do Chiado, de pendurar aos ombros, a condizer, de cor beije, com o Mickey e um urso polar. Para registar esse momento histórico, o meu pai decidiu fazer uma filmagem, numa máquina super 8, para que nunca mais se esquecesse essa etapa da minha vida. Ele, da varanda, captava a minha alegria estampada no rosto, e a vivacidade do meu caminhar. De mão dada com a minha mãe, subia a Rua Nova do Almada em passo apressado, virando-me de vez em quando para dizer adeus ao meu pai, cheia de satisfação e de vaidade. Olhando para essas imagens, vivo de novo essa emoção, e percebo o quanto havia na altura para aprender e descobrir, o quanto havia para viver… Na escola, que ficava apenas a cinco minutos de casa, situada no largo que conheceu Abril e de onde saiu a liberdade do país (no Carmo), a confusão era enorme. Lembro-me de ver muitas crianças, acompanhadas pelas suas mães no lance de escadas do estabelecimento, que ficava num primeiro andar. Era difícil a despedida para alguns, negando-se a cortar o cordão umbilical familiar, que naqueles tempos era ainda mais intenso do que agora, existindo uma grande maioria que ficava em casa com familiares até ao dia em que iam para a primeira classe. Talvez por isso muitos chorassem, esperneassem e se recusassem a ficar. Eu, bem pelo contrário, via naquela escola uma libertação e uma forma de conviver com outros meninos e de aprender novas coisas. Em breve, a escola tornar-se-ia o tal “campo com flores”, onde a minha professora primária, um ano mais tarde, disse à minha mãe que eu andava, alertando-a para a minha conduta demasiado espontânea na sala de aula. Tal reprimenda haveria de mudar fortemente o meu comportamento, que com o passar do tempo se alterou, perdendo parte da naturalidade infantil. Aos poucos tornei-me numa criança séria e responsável, tímida e mais reservada, características que para o bem ou para o mal ainda mantenho. A inocência perdera-se! Depois das despedidas, nada traumáticas, fui encaminhada para a sala, onde conheci a professora Margarida, que havia de me acompanhar durante os quatro anos seguintes. A sala, que na altura parecia enorme, estava equipada com aquelas mesas antigas com os tampos inclinados e o lugar para pôr o tinteiro, encaixadas nuns ferros verdes (que tanto jeito me fizeram mais tarde quando apanhava reguadas e necessitava de arrefecer as mãos ferventes), dois quadros negros de ardósia e ao fundo, junto à porta, a secretária da professora. A D. Margarida possuía um semblante simpático e uma postura firme e direita. Tinha o cabelo apanhado num carrapito e uns óculos que lhe preenchiam o rosto. A sua voz era um tanto adocicada, possuindo um forte sotaque com pronúncia de S. Miguel. Falava pausada e delicadamente, mostrando-se afectuosa. Porém, como o tempo viria a mostrar, seria também algo severa e disciplinadora, castigando os alunos com uma régua larga, de madeira. Várias vezes experimentei as mãos quentes, principalmente quando falhava a tabuada, ou quando, azar dos azares, ia ao quadro fazer contas (nunca fui boa a matemática é um facto) e lá me esquecia dos «vai- uns», como a professora chamava aos números somados que vinham de trás nas operações de soma, subtracção ou multiplicação. Mas, enfim seriam os métodos que tinha aprendido no regime antigo. Hoje, compreendo que ela só queria que saíssemos da primária preparados e aptos a enfrentar o ensino preparatório. Eram outros tempos… Mas, naquele primeiro dia eu desconhecia todas as coisas, os colegas, as brincadeiras, as recriações do grupo das «Doce» (onde representava sempre a Teresa, a ruiva) as repreensões e desilusões, as lágrimas entre soluços, as festas, as gargalhadas, as composições e os ditados, as contas de dividir por dois, a leitura, e todos os momentos inesquecíveis que ali iria passar. Esse primeiro dia de aulas inaugurou em mim caminhos infinitos, trilhos que ainda percorro com a avidez do saber, foi um passaporte para o sonho e para a descoberta, que fez de mim a pessoa que sou.
Legendas das fotos
1ª foto - Na 1ª classe pousando para a primeira fotografia escolar
2ª foto - Eu e a minha mana à porta da escola
3ª foto - Sou a segunda a contar da esquerda numa festa da turma
4ª foto - Sou a segunda a contar da direita no fim da 4ª classe
2 comentários:
Estas memórias são deliciosas, Ana!
E este primeiro passo na caminhada da aprendizagem do conhecimento académico é fundamental...
Beijinhos
Luís
Bom dia Ana,
O primeiro dia de aula, fica sempre na memoria :-)... é uma experiência inesquecivel...
Obrigada pela partilha :-)
beijos
Sandra
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