segunda-feira, 23 de julho de 2007

«D’este vier aqui neste papel descripto»

Ultimamente tenho tido pouco tempo para ler, devido às actividades académicas, de maneira que quando tenho um tempinho vingo-me dessa privação, e tento ler livros que me compensem e que sejam estimulantes emocional e intelectualmente.
O livro que li há pouco tempo e que me emocionou verdadeiramente foi o «Deste viver aqui neste papel descripto», cartas da guerra colonial, escritas por António Lobo Antunes.
Confesso que não sou muito fã de literatura portuguesa, com excepção dos grandes clássicos, por isso sempre que posso fujo, como o diabo da cruz, da maioria dos autores portugueses, por considerá-los geralmente demasiado enrolados, e por vezes até entediantes. Os outros, os «lights», esses digo-o abertamente, podem ser bons, mas não me interessam. No caso do escritor António Lobo Antunes, também conheço muito pouco, li por coincidência apenas o seu primeiro romance «Memórias de Elefante» e agora este das cartas de guerra.
Escrito na primeira pessoa, este livro reúne as mais belas cartas que um dia este escritor terá escrito à sua primeira mulher, Maria José. Com 28 anos, mal acabado de casar, este homem foi enviado para aquela guerra cruel em África, para um país que não conhecia, que não partilhava hábitos, nem costumes. Como tantos outros milhares de militares, António Lobo Antunes era um homem só nesta guerra. Para se entreter, escrevia aerogramas (envelopes-carta isentos de selo para uso militar e familiar) quase diários, à sua mulher, confessando-lhe o seu amor apaixonado e ardente, anestesia que o fazia esquecer por breves instantes as atrocidades que constantemente testemunhava na sua condição de médico e militar.
Nessas cartas, joga com as palavras, engana o medo, embora às vezes o admita, sente a gravidez da sua jovem mulher à distância, idealiza uma filha que só conhece meses depois de nascer, enfatiza os sentimentos, por vezes de forma tão infantil que chega a ser comovente. António Lobo Antunes é neste livro, a voz de todos os portugueses que combateram em África, descrevendo o seu dia a dia, os pelotões, os lugares onde ficara instalado.
Após este livro, o meu apreço por Lobo Antunes aumentou. Talvez porque tivesse ficado emocionada com a sua fragilidade neste período. Também qual não é a guerra que não transforma um ser humano?
Talvez por todos estes motivos, não me tenha pesado a hora e pouco que esperei de pé e ao frio, por um autógrafo seu na Feira do Livro. Está doente, vê-se no rosto mais magro e no cansaço que sente. A fila para os autógrafos era enorme e interminável, e as pessoas esperavam ansiosas, comentando as obras de Lobo Antunes, os seus enredos e o seu imaginário, nem sempre fácil de compreender. Atrás de mim, um jovem rapaz não cabia de emoção de ter os seus livros autografados pelo seu escritor de eleição. No entanto, diante dele, poucos confessavam os seus pensamentos, e o tanto que tinham para lhe dizer. Ele não é homem de muitas falas e o tempo também não o permitia. Lembro-me de um dos senhores que ia à minha frente, lhe ter apertado a mão e lhe ter dito: «Temos muito em comum!». O escritor olhou-o fixamente, com aquele azul cristalino intenso, e sem proferir palavra, ouvi-o atentamente, só depois expressou uma ou duas palavras.
Quando chegou a minha vez, também não tive coragem nem voz para lhe dizer nada, e no fundo parecia que, tal como todos os outros leitores, eu também o tinha acompanhado em África, também eu tinha escrito e lido aquelas cartas… Foi uma sensação estranha…
Por todos estes motivos, quem se interesse por conhecer melhor este período conturbado da nossa história recente, recomendo vivamente a leitura deste livro. É um relato da nossa história de horror, mas é também seguramente uma bela história de amor, que infelizmente, como o futuro o veio a escrever, acabou por não dar certo. Seja como for, não deixa de ser interessante conhecê-la.

Site não oficial de António Lobo Antunes
http://www.ala.nletras.com/livros/deste_viver_aqui_neste_papel_descripto.htm

3 comentários:

Anónimo disse...

Oi, Ana.
Ainda não li o livro, mas fiquei sem dúvida com vontade de o fazer e podes crer que o vou comprar.
A época descrita, foi sem dúvida muito marcante e reflectiu-se bastante na vida destes homens que todos conhecemos, pais, familiares, amigos. Foi também à distância, muito marcante para todas essas jovens mulheres que tiveram que crescer e ser mães sozinhas, na incerteza diária dos seus homens voltarem.
jitos,
gm

Anónimo disse...

Esqueci-me de dizer...
Obrigada por estas dicas!
bjs
gm

Anónimo disse...

Olá Ana!
Também a mim me deixaste cheia de vontade de ler o livro... ultimamente não tenho andado muito entusiasmada com as minhas últimas leituras e nunca li nada do Lobo Antunes, talvez seja um bom livro para começar.
Até...
Cláudia

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